Família Diferente
CELSO ANTUNES
Fiquei uma semana som ver o Thomas. Como o feriado do dia 12 com o outro do dia 15 sugerisse emenda, a escola diz que “antecipou” lições e concedeu folga à turma. Thomas aproveitou para aceitar o convite de praia e assim passou alguns dias em Ubatuba, com seu amigo Rolf e seus pais. Veio cheio de novidades:
- São legais, Celso, muito legais. Mas são também muito diferentes...
- Diferentes em que quê? Thomas. Explique melhor. Sei que esse seu amigo é europeu e quando ainda bebê seus pais vieram morar em nossa Terra. Você quer dizer que a culinária é diferente? São diferentes, por acaso, as roupas que usam?
- Não Celso. Comem mais ou menos a mesma coisa que a gente e também se vestem de maneira normal, mas são diferentes porque a vida deles parece girar em torno dos livros. São atentos a tudo e a qualquer momento param de ler, para atender o que a gente pede. Mas, se vão para a praia a primeira coisa que pegam é o livro e na casa deles existem livros em toda parte. Parece até um novo tipo de decoração. Livro no banheiro e até aí acho normal, mas também livro no terraço, na sala, nos quartos e até mesmo na cozinha. Incrível.
- E o Rolf, Thomas? Também gosta de ler?
- Gostar, Celso? Acho que já não é nem gostar. Aquela turma tem é paixão pela leitura. Outro dia, a mãe do Rolf lá na praia perguntou se ele tinha trazido o Bloqueador Solar e ele, envergonhado, voltou correndo para pegar, mas o livro o cara não esqueceu. Fiquei pensando “uma cara branquelo como ele, vem a praia e esquece o bloqueador, mas não esquece sua leitura”. Nunca vi uma família assim tão vidrada!
- E você acha isso errado, Thomas?
- Não acho errado, acho que eles são diferentes. Quando os pais conversam com os filhos, quase sempre falam dos livros que estão lendo e na viagem descobriam nas pessoas que passavam os personagens de suas leituras. Achei engraçado que o Rolf e a sua irmã nunca disseram que os pais os obrigam a ler. Não liam por obrigação, liam pro prazer. Liam para brincar com as palavras, para imaginar e para imaginar-se, para sonhar.
- E na escola Thomas? Como é o desempenho desse seu amigo Rolf? E da irmã dele? Devem ser ótimos em literatura, não?
- São ótimos em tudo. Sabem tudo, opinam sobre tudo. Tem hora que o assunto vai para o futebol, todo mundo tem palpite, mas o Rolf tem opinião. Sabem coisas da nossa política que nos nem imaginamos e vivem com os olhos grudados no mundo.
- São legais, Celso, muito legais. Mas são também muito diferentes...
PEQUENOS ERROS, IMENSO DESASTRE
CELSO ANTUNES
Em muitas coisas Chile e Brasil se aproximam. Não apenas as contingências de se apresentarem na mesma parte do mundo, viveram também uma história antiga e recente não muito diferente. Mas, há naquele país uma sensível diferença que acorda inveja a todos os brasileiros: No Chile se desenvolve uma educação pública de qualidade, muito acima da média da educação pública praticada no Brasil. A diferença é menos marcante pela forma como se apresenta lá e aqui o ensino e mais, muito mais, pelos efeitos e consciências dessa educação.
O Chile apresenta índices de escolaridade muito acima que o nosso e o mundo inteiro aplaude seu progresso notável como produto de uma educação pública de qualidade. Mas, o que faz o professor chileno em sua sala de aula, que o brasileiro não faz? Será que poderíamos absorver desse país, novas maneiras de se ensinar? O caráter afirmativo da segunda questão explica a primeira e assim qualquer professor brasileiro, em escola pública ou particular, poderia ministrar aulas segundo o excelente modelo chileno, desde que ousasse empreender algumas mudanças. Simples, mas de resultados claramente assegurados. Vamos, pois, a elas.
A MANEIRA DE SE ACREDITAR NA CIÊNCIA
A Lei da Gravidade, por exemplo, não é “mais ou menos” aceitável, a evolução da espécie humana não representa hipótese de aceitação restrita. Em Ciência não existe intuição e achismo e sim a verdade que confirma ou que desmente a hipótese e, portanto, se é essencial ensinar um fato cientifico é importante que alunos professores percebam que estão diante de evidências e que o bom senso implica em aceitá-las.
No Chile o ensino das Ciências transita pelo belo caminho das leis, das pesquisas, das especulações e da realidade que se faz verdade e não pelo senso oportunista de se aceitar proposições que não científicas “respeitam o direito de pensar de cada um”.
A MANEIRA DE SE PENSAR A FORMAÇÃO DO PROFESSOR DAS SÉRIES INICIAIS
Para os pacientes que apresentam maior gravidade em sua patologia é essencial que os assistam os médicos mais competentes. Essa realidade singela, mas realista, que é um dos princípios básicos da medicina vale para a educação chilena, mas é um mito para a educação brasileira. Infelizmente costumamos pensar que quanto mais elementar o nível de informações de um aluno, mas alto pode ser o despreparo de seu professor. Isso é um absurdo, pois é nos primeiros anos de vida que o cérebro mais humano de desenvolve e, portanto, mais requer quem melhor o compreenda e quem de forma mais profissional o estimule. Para os níveis mais elevados de uma pós-graduação, o aluno pode dispensar a ajuda eficiente de um grande mestre, para as séries iniciais jamais.
A MANEIRA DE SE TRABALHAR MÉTODOS DE ENSINO
Nada menos que oito em cada dez professores brasileiros se tivessem que definir o método de ensino que desenvolvem deveriam chamá-lo de “decoreba” ou, de forma mais atualizada, "mnemônico". Esse fundamento, tão antigo quanto as aulas ministradas por Anchieta, impõem aos alunos a repetição do que fala o professor, sem qualquer necessidade de imprimir vocabulário próprio e específico a essa repetição. Quem sabe significativamente, sabe dizer o que sabe de muitas maneiras, mas não é esse o saber de nossos alunos da escola pública que, quando pensam que sabem, sabem repetir sentenças sem vinculá-las a sua realidade, sem fazer dessa aprendizagem um caminho para descobertas de outros saberes. Uma aprendizagem nesse estilo não serve para quase nada, não explora a capacidade de análise e síntese, não impõe análise crítica a generalizações, não aprimora competências. O estudante absorve informações não porque aprenderam analisá-las a luz da razão.
A MANEIRA DE SE PENSAR EM ESTÍMULOS A CRIATIVIDADE
Criatividade é palavra exaltada em todas as escolas do país. Não há quem a condene e nem mesmo quem ponha em dúvida sua importância, mas são poucos os professores que sabem realmente explorar e potencializar a criatividade de seus alunos. Na maior parte das vezes confunde-se criatividade com improvisação e se exalta o aluno que faz coisas de maneira diferente, ainda que faça besteiras e que essa sua maneira original de fazer não tenha qualquer validade. A verdadeira criatividade, todos sabemos, está sempre na base da investigação científica e não se conhece gênio humano que não tenha sido criativo em uma ou várias linguagens, mas uma escola que a explore precisa de professores que conheçam os fundamentos neurocientíficos de sua eclosão e desenvolvimento e, assim, possam a estimular a mente como em boas aulas de Educação Física se fortalecem os músculos. Laboratórios de Criatividade são mais baratos e bem mais eficientes que Salas de Computação que permanecem fechadas por falta de técnicos.
Não se buscou nesta síntese, afirmar que todas as escolas chilenas são melhores que todas as escolas públicas brasileiras e nem mesmo se acreditar que também lá não existam os erros que aqui se buscou sintetizar. A diferença maior se coloca em dois pontos cruciais: o primeiro é aferir que escolas retrógradas são minoria lá e maioria aqui e, talvez mesmo por essa razão, existe pensamento e vontade de transformá-las lá e de ignorá-la por aqui.
COMO NÃO CONFUNDIR INTELIGÊNCIA COM CAPACIDADE OU COMPETÊNCIA
CELSO ANTUNES
Toda pessoa adulta goste ou não do sabor, sabe o que é alho e muito provavelmente já ouviu, pelo menos uma vez na vida, o provérbio “não confunda alhos com bugalhos”, mas poucos se dão conta do que, afinal de contas, significa “bugalho”. Buscando essa palavra em um dicionário, aprendi que “bugalho” é a excrescência de qualquer parte do vegetal, produzida pela ação de fungos ou de insetos. Em outras palavras, o provérbio popular sugere que se separe o produto desejado, no caso o alho, sem confundi-lo com algum caroço de discutível semelhança.
Esse provérbio, de uma certa forma, se ajusta à teoria das inteligências múltiplas e solicita, portanto, que não se confunda o conceito de “inteligência” com o de “competência”, “habilidade” ou ainda com conceito de “construtivismo” que já analisamos outras vezes.
Não há mesmo razão alguma para confundi-los.
Inteligência constitui um potencial biopsicológico que no ser humano ajuda-o a resolver problemas. Dessa forma representa atributo inato à espécie e assim nascemos com nossas diferentes inteligências, cabendo ao ambiente no qual se inclui naturalmente a escola, mais acentuadamente estimulá-las.
A “competência” não é inata e, portanto, constitui atributo adquirido.
Representa a capacidade de usar nossas inteligências, assim como pensamentos, memória e outros recursos mentais para realizar com eficiência uma tarefa desejada. Se ao buscar um destino qualquer descobrimos que a estrada foi interrompida, nossas inteligências levam-se a essa constatação e a certeza de que se deve buscar outra saída, mas a forma como faremos determina o grau de competência da pessoa. Como se percebe, a competência é a operacionalização da inteligência, e a forma concreta e prática de colocá-la em ação. Assim posto, ao trabalhar as diferentes inteligências humanas, pode o professor ativar diferentes competências. Percebe-se dessa maneira que a noção de “competência” surge quando aparece ou é proposto um problema, pois este desafio é que mostrará a forma melhor em superá-lo. Superar um problema com competência, entretanto, não implica que tenhamos habilidade para fazê-lo.
A habilidade é produto do treino e do aprimoramento de nossa destreza.
Para que esses conceitos se ajustem a prática, desenvolvamos o seguinte exemplo: o automóvel que nos leva a praia empaca em meio à estrada; nossas inteligências detectam esse problema e a necessidade em superá-lo. Se tivermos competência para isso, apanhamos a caixa de ferramentas e colocamo-nos em ação, se não temos que ao menos tenhamos uma outra competência, a de chamar depressa um mecânico. Supondo que saibamos consertar a peça defeituosa e, dessa forma, resolvendo de forma pertinente o problema que nos empaca, o faremos com maior ou com menor habilidade. Se o problema é histórico em nosso carro e em nossa vida, provavelmente já conquistamos habilidade maior em substituir ou consertar a peça defeituosa.
Levando-se esse exemplo para sala de aula, podemos ao ensinar um ou outro conteúdo explorar suas implicações lingüísticas, lógico-matemáticas, espaciais, corporais e outras. Podemos ainda, propondo desafios e arquitetando problemas, treinar competências nossas e de nossos alunos, verificando que alguns as usam com notável habilidade, outros com habilidade menor que, com persistência poderá crescer.
O trabalho com inteligências múltiplas em sala de aula pressupõe uma reflexão construtivista, voltada para o despertar progressivo de competências e sua transferência para vida prática através do desenvolvimento de muitas habilidades que aos poucos se aprimora. Essa concepção se opõe a idéia de que o saber transfere-se de uma pessoa para outra como algo que estando pronto vem de fora e se encaixa na mente do aluno.
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Fonte: http://www.celsoantunes.com.br
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