CORTELLA, Mario Sergio. A escola e o conhecimento: fundamentos epistemológicos e políticos. 3ª edição. São Paulo : Cortez : Instituto Paulo Freire, 20
Introdução:
A Educação está em Crise!
Ø A crise da Educação tem sido inerente à vida nacional porque não atingimos ainda patamares mínimos de uma justiça social compatível com a riqueza produzida pelo país e usufruída por uma minoria. Não é, evidentemente, "privilégio" da Educação; todos os setores sociais vivem sucessivas e contínua crises. P. 9.
1. Gênese recente de uma antiga crise e atuação dos educadores
Ø O modelo econômico implantado no país a partir de 1964 privilegiou a organização de condições para a produção capitalista industrial e, assim, o poder político central (atendendo aos interesses das elites) direcionou os investimentos públicos para grandes obras de infra-estrutura: estradas, hidrelétricas, meios de comunicação etc.; o financiamento para essa política e para a aquisição de equipamentos e tecnologias foi obtido com empréstimos no esterior (pelo Estado ou por privados com o aval do Estado) e levou a um brutal endividamento do país, retirando, cada dia mais, os recursos necessários para investimentos nos setores sociais. P. 11.
Ø Assim, a educação pública das últimas décadas (com reflexos no ensino privado) foi um dos desaguadouros do intencional apartheid social implementado pelas elites econômicas e é a partir dele que podemos compreender a crise da Educação e a atuação político/pedagógica dos educadores. P. 13.
2. Educação brasileira, epistemologia e política: por que repensar fundamentos dessa articulação?
Ø Desponta mais fortemente hoje uma preocupação: não basta reafirmar que o aumento da quantidade de cidadãos na escola pública leva a uma queda da qualidade de ensino (com as causas já apontadas); é preciso pensar uma nova qualidade para uma nova escola, em uma sociedade que começa, paulatinamente, a erigir a Educação como um direito objetivo de cidadania. P. 13
Ø A quantidade na Educação passa, necessariamente, pela quantidade. Em uma democracia plena, quantidade é sinal de qualidade social e, se não se tem a quantidade total, não se pode falar em qualidade. Afinal, a qualidade não se obtém por índices de rendimento unicamente em relação àqueles que freqüentam escolas, mas pela diminuição drástica da evasão e pela democratização do acesso. P. 14
Ø A democratização do saber deve revelar-se, então, como objetivo último da escola pública, na educação da classe trabalhadora (agora freqüentando-a em maior número) com uma sólida base científica, formação crítica da cidadania e solidariedade de classe social. P. 15.
Ø Portanto, não é uma escola pública na qual o trabalhador simplesmente aprenda o que iria utilizar no dia ou semana seguinte no seu cotidiano (em uma dimensão utilitária e redutora), mas aquela que selecione e apresente conteúdos que possibilitem aos alunos uma compreensão de sua própria realidade e seu fortalecimento como cidadãos, de modo a serem capazes de transformá-la na direção dos interesses da maioria social.
Uma nova realidade social, por sua vez, exige uma reorientação curricular que preveja o levar em conta a realidade do aluno. Levar em conta não significa aceitar essa realidade mas dela partir; partir do universo do aluno para que ele consiga compreendê-lo e modificá-lo. P. 16.
Ø Por isso, a precisão de transmutar os conhecimentos científicos em ferramentas de mudanças; o universo vivencial da classe trabalhadora é extrema-(p.16) mente rico em termos culturais, mas precário em termos de conhecimentos mais elaborados, que são propriedade quase exclusiva das elites sociais que dificultam ao máximo o acesso da classe trabalhadora a esta forma de conhecimento eficaz. Ps. 16/17.
Ø Criar não é um jogo mais ou menos frívolo. O criador meteu-se numa aventura terrível que é a de assumir ele próprio, até o fim, os perigos que enfrentam as suas criações". Jean Genet. P. 20.
Capítulo 1 - Humanidade, cultura e conhecimento
Ø Todas e todos que atuamos em Educação, porque lidamos com formação e informação, trabalhamos com o conhecimento. O conhecimento, objeto da nossa atividade, não pode, no entanto, ser reduzido à sua modalidade científica, pois, apesar de ela estar mais direta e extensamente presente em nossas ações profissionais cotidianas, outras modalidades (como o conhecimento estético, o religioso, o afetivo etc.) também o estão. P. 21.
O que significa o ser humano?
Ø Muitas já foram as definições que procuraram capturar uma essencialidade da natureza humana, a começar da mais clássica e conhecida: o Homem é um animal racional. Essa sentença, marcada por uma aparência de obviedade e repetida à exaustão (com um certo ar triunfal), foi expressa por Aristóteles (384-322 a.C.) no século IV a.C. e, muito embora a maioria das pessoas não conheça sua origem, faz parte do senso comum. Antes dele, seu mestre Platão (427-347 a.C.) houvera definido o Homem como um bípede implume e, no início do século XX, o grande poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) elaborou uma definição um pouco mórbida, mas tecnicamente bem precisa: o Homem é um cadáver adiado!
O que há de comum entre essas três idéias? A tentativa de identificar o humano, dar-nos uma iden-(p.23) tidade, isto é, nos diferenciar do restante da realidade de modo que nela nos localizemos; ao mesmo tempo, é a procura de uma definição (do latim finis, limite, fronteira) daquilo que é nosso contorno, que nos circunscreve, nos contém, ou seja, marca nosso lugar. Ps. 23/24.
Ø qual, então, o nível atual de Conhecimento que a Ciência, como forma mais precisa e eficaz de investigação da realidade, nos aponta quanto ao lugar do humano?
Eis, em termos bastante gerais, uma síntese das conclusões provisórias e ainda submetidas a controvérsias:
. estamos em um dos universos possíveis, ele é finito e tem provavelmente o formato cilíndrico (em função da curvatura do espaço entre si mesmo);
. esse universo surgiu aproximadamente 15 bilhões de anos, a partir de uma grande explosão inicial apelidada de "big bang" e se extinguirá daqui a outros tantos bilhões de anos, em função do esvaecimento da matéria e energia nele existentes;
. dessa explosão original resultou uma expansão (que ainda continua), em escla inimaginável, e que se concentrou, basicamente, em grandes mas-(p.25)sas estelares que, por sua vez, se agruparam em 100 bilhões de galáxias;
. uma dessas galáxias é a nossa Via Láctea, que contém 100 bilhões de estrelas;
. nessa galáxia, há 4,6 bilhões de anos, originou-se o nosso sistema solar;
. o sol, uma das 100 bilhões de estrelas da galáxia, é relativamente pequeno (de 5ª grandeza), e tem, girando à sua volta, 9 já conhecidos planetas (do grego planetès, vagabundo, errante);
. um desses planetas é a terra, o quinto em tamanho e distante 150 milhões de quilômetros do Sol;
. na terra há vida e, até pouco, supunha-se que sé nela;
. estima-se que nosso planeta tenha entre 3 e 30 milhões de espécies de vida diferentes, embora apenas 1,4 milhão tenha sido classificada (750.000 insetos, 41.000 vertebrados, 250.000 plantas e o restante de outros invertebrados, fungos, alga e microorganismos);
. uma dessas espécies é a nossa, em sua forma mais recente (35.000 anos para cá), chamada de Homo Sapiens Sapiens;
. a espécie humana tem, no momento, 5,5 bilhões de indivíduos;
. um deles sou eu.
De forma caricatural (mas não falsa), assim se poderia responder à questão Quem sou eu?: Sou apenas um indivíduo entre outros 5,5 bilhões, pertencente a uma espécie entre outras 3o milhões(p.26) diferentes, vivendo em um planetinha, que gira em torno de uma estrelinha entre outras 100 bilhões, que compõem uma mera galáxia em meio a outras 100 bilhões, presentes em um dos universos existentes... ps. 26/27.
Ø Os 500 anos mais recentes nos "descentraram" bastante: Copérnico (1473-1543) e Galileu (1564-1642) derrubaram a certeza de sermos o centro universal; Darwin (1809-1882) abalou a convicção de estarmos um pouco abaixo dos "anjos" e nos remeteu para a companhia, superior ainda, de outros primatas; Freud (1856-1939), ao identificar em nós um "porão" desconhecido e colocar sob suspeita a noção de termos uma "alma" livre a nos dirigir. Isso tudo somente no nível da Ciência, sem apontar a multiplicidade de interpretações cambiantes das religiões e das artes. P. 27.
Ø Temos vida, sim, e, exatamente por isso, deixamos de tê-la (pelo menos na forma como a entendemos). A consciência da vida transporta também a consciência da precariedade da vida e da transitoriedade da existência humana. Todos os seres vivos por nós conhecidos morrem; é provável que seja o ser humano o único que sabe que vai morrer!
Esse fato não nos agrada muito e procuramos afastá-lo, se não concretamente, ao menos simbolicamente, por intermédio da Arte, da Religião, da Linguagem.
Afinal, o que é, para nós, a vida? De forma objetiva, sem edulcorar, é o nome que damos ao intervalo de tempo entre nascer e morrer. Se o grande Guimarões Rosa dizia que viver é muito perigoso, nascer também o é (morrer nem se fala...). P. 28.
Ø Vários estudiosos entendem que a nostalgia do conforto uterino é o que leva muitos de nós, quando estamos deprimidos, melancólicos ou com sensação de abandono, a ficar deitados quase em posição fetal (encolhidos, com os joelhos em direção ao peito), querendo retornar. P. 29.
Ø Há veredas nesse grande sertão? Vejamos, ainda que ludicamente, alguns indicadores técnicos, oferecidos pela racionalidade mais sequiosa, e que embaçam nosso caminhar:
. há 35.000 anos nos tornamos a espécie planetária dominante, sem outros rivais que ameaçassem nosso domínio, exceto outros humanos, a ponto de atualmente termos capacidade para aniquilar a vida na terra;
. há 12.000 anos chegamos a 3 milhões de indivíduos da espécie e, desde então, estamos próximos de aumentar em 2.000 vezes esse número;
. o tempo médio de vida humana individual no planeta é, hoje, de 60 anos, isto é, 21.900 dias;
. cada um de nós, diariamente, alimenta-se e gera dejetos, na proporção relativa de um quilo de consumo para um quilo de resíduos rejeitados;
. assim, a espécie consome a cada dia 5,5 milhões de toneladas e rejeita o equivalente (ao qual é preciso dar um destino);
. ao longo de sua existência, um ser humano ingere quase 22 toneladas das outras formas de vida contidas no planeta, sem contar aquelas utilizadas para finalidades não-alimentares (roupas, calçados, objetos, diversão, transporte, experimentos etc.);
. nessa duração de 60 anos, em linhas gerais, os primeiros 20 são dedicados basicamente à "montagem" de nossas estruturas (psíquicas, comunicacionais, biológicas, reprodutivas, de aprendizagem e trabalho), os 20 seguintes ao aproveitamento concentrado destas (na geração e cuidado de outros humanos e na produção de meios de sobrevivência). Nos derradeiros 20 anos, se inicia a "desmontagem" (falhas nas estruturas consolidadas e diminuição da intensidade e eficácia da ação), até a falência final de cada conjunto orgânico;
. para complicar, precisamos de, ao menos, 1/3 das horas diárias em estado de sono e mais 1/3 delas à busca de condições para manter o corpo vivo, acumulando-se, assim, 20 anos dormindo e mais 20 trabalhando;
. ao final, independentemente do local e época de nascimento, da condição sócio-econômica, do nível de escolaridade, das propriedades acumuladas, do status na comunidade... morremos.
Cruel, não?
Colocado dessa forma, sem dúvida. Não é estranho que muitas vezes nos sintamos perdidos, com uma sensação de angústia e abandono universal. Para que tudo? Para depois acabar?
Por isso, Albert Camus (1913-1960), que dedicou sua obra a pensar o absurdo da condição humana, escreveu na introdução do seu L'Homme Revolté: "O homem é a única criatura que se recusa a ser o que ela é". Ps. 30/31.
Ø Somos, antes de mais nada, construtores de sentido, porque, fundamentalmente, somos construtores de nós mesmos, a partir de uma evolução natural.
Um passeio pelas nossas origens
Ø É patente que o animal humano difere dos outros animais; temos uma história peculiar no processo de evolução biológica. No entanto, para facilitar o "passeio" que propomos, esqueçamos um pouco o estágio atual atingido pela nossa espécie e façamos um exercício hipotético de nos vermos simplesmente como um animal qualquer em nosso distante passado.
Do ponto de vista da nossa conexão com o meio ambiente, não somos especialistas em nada! Nossa estrutura orgânica é débil, em relação às outras espécies, e nos habilita para poucas das vantagens naturais na luta pela manutenção da vida.(p.32)
Comparados a outros seres, somos um animal frágil: possuímos reduzida força física, não temos muita velocidade de deslocamento, nossa pele é pouco resistente ao clima e agressões, não nadamos bem e não voamos, não resistimos mais do que alguns dias sem água e alimento, nossa infância é muito demorada e temos de ser cuidados por longo tempo. Ps. 32/33.
Ø O histórico da evolução biológica tem mostrado que a especialização exclusiva é, muitas vezes, fatal. Os animais que se adaptam perfeitamente ao ser habitat, alcançando um alto grau de definição ( com suas "fronteiras" delimitadas e sem margem de flexibilidade), correm o risco de, ao acontecerem mudanças no ambiente, perecer. P.33.
3. Cultura: o mundo humano
Ø Somos, como já dito, um ser não-especializado na origem e, portanto, largamente incompatível com a adaptação à natureza.
Para nós, em última instância, adaptar-se é morrer. Estar adaptado significa estar acomodado, circunscrito a uma determinada situação, recluso em uma posição específica; adaptar-se é, sobretudo, conformar-se (acatar a forma), ou seja, submeter-se. P. 39.
Ø Temos de enfrentar a realidade natural (que chamaremos mundo), lutar contra ela, romper a adaptação, e isso não é uma questão de gosto ou vontade; essa luta se situa no campo da liberdade mas no da necessidade! A liberdade será uma conquista paulatina na nossa História à medida que vencemos a necessidade.
Lutamos com a natureza e a natureza luta conosco, interferimos nele e ela em nós; é uma relação de reciprocidade a qual conceituamos como contradição (contrários que se inter-relacionam e se interpenetram conflituosamente) humano/mundo.
Qual é, porém, a "ferramenta" para enfrentarmos a realidade? A tentação inicial seria dizer: a racionalidade. No entanto, evidentemente, não basta pensar que as coisas aconteçam; é preciso agir.
Nossa relação de interferência no mundo se dá por intermédio da ação; entretanto, não é uma ação(p.40) qualquer o que nos distingue, pois todos os animais têm ação. Nossa ação, porque altera o mundo, é ação transformadora, modificadora, que vai além do que existia; todavia, alguns outros animais também têm ação transformadora.
O que vai nos diferenciar, de fato, é que só o animal humano é capaz de ação transformadora consciente, ou seja, é capaz de agir intencionalmente (e não apenas instintivamente ou por reflexo condicionado) em busca de uma mudança no ambiente que o favoreça.
Essa ação transformadora consciente é exclusiva de ser humano e a chamamos trabalho ou práxis; é conseqüência de um agir intencional que tem por finalidade a alteração da realidade de modo a moldá-la às nossas carências e inventar o ambiente humano. O trabalho é, assim, o instrumento da intervenção do humano sobre o mundo e de sua apropriação (ação de tornar próprio) por nós.
Se o trabalho é o instrumento, qual é o nome de efeito de sua realização? Nós o denominamos Cultura (conjunto dos resultados da ação do humano sobre o mundo por intermédio do trabalho).(p.41)
Veja-se que, por ser Cultura um produto derivado de uma capacidade, é absurdo supor que alguém não tenha cultura; tal concepção, uma discriminação ideológica, interpreta a noção de cultura apenas no seu aspecto intelectual mais refinado e não leva em conta a multiplicidade da produção humana coletivamente elaborada.
Nós humanos somos, igualmente, um produto cultural; não há humano fora da Cultura, pois ela é o nosso ambiente e nela somos socialmente formados (com valores, crenças, regras, objetos, conhecimentos etc) e historicamente determinados (com as condições e concepções da época na qual vivemos). Em suma, o homem não nasce humano e, sim, torna-se humano na vida social e histórica no interior da Cultura.(p.42)
O termo que expressa essa noção do humano produzir-se, produzindo Cultura e sendo por ela produzido, é hominização. P. 41/42/43.
Ø É claro que o mais importante bem de produção é o próprio Humano e, com ele e nele, a Cultura; no entanto, como a transmissão da Cultura não é por hereditariedade e genética ("ninguém nasce sabendo"), cada geração, não podendo limitar-se a consumir a Cultura já existente, necessita, também, recriá-la e superá-la.
Desse ponto de vista, o bem de produção imprescindível para nossa existência é o Conhecimento, dado que ele, por se constituir em entendimento, averiguação e interpretação sobre a realidade, é o que nos guia como ferramenta central para nela intervir; ao seu lado se coloca a Educação (em suas múltiplas formas), que é o veículo que o transporta para ser produzido e reproduzido.
4. Conhecimento e valores: fronteiras da não-neutralidade
Ø A primeira intenção de todo ser vivo é manter-se vivo, mas, para nós, não é suficiente a mera sobrevivência apoiada em conhecimentos sobre o mundo: é fundamental que a vida valha a pena. Por isso, um dos produtos ideais da Cultura são os valores por nós criados para o existir humano pois, quando os inventamos, estruturamos uma(p.45) hierarquia para as coisas e acontecimentos, de modo a estabelecer uma ordem na qual tudo se localize e encontre seu lugar apropriado. Só assim a vida ganha sentido (na dupla acepção de significado e direção). Ps. 45/46.
Ø No entanto, embora valores e conhecimentos sejam externados a partir de indivíduos, sua construção é coletiva, dada a impossibilidade de, como apontamos, existir algum humano originalmente apartado da vida social.
Aí adentra um outro elemento importante: a vida social é, também, vida política, isto é, configura-se como espaço de conquista e manutenção de poder sobre os bens e pessoas, não havendo, ainda, sociedades complexas de composição igualitária. P. 48.
Ø Ora, o principal canal de conservação e inovação dos valores e conhecimentos são as instituições sociais como a família e a Igreja, o mercado profissional, a mídia, a escola etc. tal como mencionamos, ao contrário dos outros seres vivos, nós os humanos, dependemos profundamente de processos educativos para nossa sobrevivência, (não carregamos em nosso equipamento genético instruções suficientes para a produção da existência) e, desse prisma, a Educação é instrumento basilar para nós. P. 49
Ø No entanto, a Educação pode ser compreendida em duas categorias centrais: educação vivencial e espontânea, o "vivendo e aprendendo" (dado que estar vivo é uma contínua situação de ensino/aprendizado),e educação intencional ou propositada, deliberada e organizada em locais predeterminados e com instrumentos específicos (representada hoje majoritariamente pela Escola e, cada vez mais, pela mídia).
Os processos pedagógicos também não são neutros, estando imersos no tecido social e tendo, ainda,(p.49) a tarefa de elaborar o indispensável amálgama para a vida coletiva, sendo conservadores e inovadores; é como tal que esses processos devem ser enfocados e compreendidos.
É por isso que, principalmente nós que lidamos também com processos pedagógicos na sua modalidade intencional, precisamos de uma atenção extremada à compreensão recíproca da visão de alteridade. Aquilo que afirma François Laplantine serve muito para nós:
Presos a uma única cultura, somos não apenas cegos às dos outros, mas míopes quando se trata da nossa. A experiência da alteridade... leva-nos a ver aquilo que nem teríamos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em ficar nossa atenção no que nos é habitual, familiar, cotidiano, e que consideramos "evidente". Aos poucos, notamos que o menor de nossos comportamentos (gestos, mímicas, posturas, reações afetivas) não têm realmente nada de "natural" (Laplantine, 1988:21).
Educadoras e educadores necessitamos reforçar a consciência de que valores e conhecimentos, em vez de serem determinações de uma natureza humana imóvel, são resultantes de uma sucessão de ocorrências existenciais.
Buscar "enxergar" o outro não implica de forma alguma aceitá-lo como é; não há prática educativa coerente se não houver inconformidade, dado que a própria palavra "educação" significa conduzir para um lugar diferente daquele em que se está. No entanto, a incompreensão da gênese e(p.50) desdobramentos dos valores e conhecimentos daqueles com os quais convivemos é um obstáculo brutal para uma relação pedagógica autônoma e produtiva.
O empenho consistente em uma visão de alteridade permite identificar nos outros (e em nós mesmos!) o caráter múltiplo da Humanidade, sem cair na armadilha presunçosa de taxar o diferente como sendo esquisito, exc6entrico, esdrúxulo e, portanto, assimilar a postura prepotente daqueles que não entendem que se constituem em um dos arranjos possíveis do ser humano, mas não o único ou, necessariamente, o correto. Ps. 49/50/51.
Ø No entanto, o conhecimento tem uma especificidade inerente que o liga à história em sua estrutura e conjunturas e que é, em cada época, manifestado em seu sentido de diferentes maneiras no interior da Escola. Por isso, um esforço que é exigido hoje da prática em Educação é o de relativizar o peso dos conhecimentos científicos, não como forma de desqualificá-los (o que seria abstruso), mas como um rico veio para possibilitar a historização da produção humana e diminuir a presunção aleatória contra o passado e contra os não-escolarizados. P. 52.
Ø Os filósofos não brotam da terra como cogumelos, eles são frutos de seu tempo, de seu povo, cujas forças mais sutis e mais ocultas se traduzem em idéias filosóficas. O mesmo espírito fabrica as teorias filosóficas na mente dos filósofos, e constrói estradas de ferro com as mãos dos operários. A filosofia não é exterior ao mundo". (Karl Marx). P. 54.
CAPÍTULO 2
Conhecimento e verdade: A matriz da noção de descoberta
Ø Toda educadora e todo educador tem uma interpretação sobre o conhecimento: o que é, de onde vem e como chegar até ele. Ora, essa interpretação nem sempre é consciente e reflexiva e, no mais das vezes, é adotada sem uma percepção muito clara de suas fontes e conseqüências.
No entanto, como o cerne e a finalidade última dos processos educativos em geral é o Conhecimento (formativo e informativo), as concepções pedagógicas de cada um e de cada uma de nós estão em uma estreita conexão com a "teoria sobre o conhecimento" que, individual ou coletivamente, assumimos. P. 56.
Ø Ademais, quando lidamos com um conhecimento qualquer, sempre nos preocupamos em julgar se ele é válido ou correto, isto é, qual é seu valor de verdade; por isso, é parte integrante de uma teoria do Conhecimento refletir sobre a verdade.
É fundamental notar que a compreensão mais presente em nosso sistema educacional é aquela que entende o Conhecimento ou a Verdade como descoberta. Uma noção como essa tem desdobramentos políticos e epistemológicos profundos nas nossas práticas e por isso é preciso iluminar sua gênese de modo a permitir maior consistência e consciência em nossas ações educativas.
O termo verdade é dos mais complexos para ser conceituado pois origina-se sempre de um julgamento (habitual, consensual ou arbitrário) e, mais ainda, como todo juízo de valor (tal como o conhecimento que o provoca), é uma ocorrência histórica,(p.56) ou seja, é relativo à Cultura e à Sociedade na qual emerge em certo momento.
O exercício de nossas atividades se dá no Ocidente e, pelo óbvio, estamos mergulhados na cultura ocidental, com todas as suas raízes históricas e desenvolvimentos posteriores. São essas raízes que devemos visitar, se quisermos perceber a procedência de nossos entendimentos sobre o conhecimento e a Verdade.
Um caminho possível para iniciar essa visita é buscar o significado etimológico do conceito de Verdade nos idiomas de origem latina como o nosso. Em português, a palavra vem do latim veritate, atada ao radical verus (certo, autêntico, correto). Ps. 56/57.
Ø Desse ponto de vista, o conceito de Verdade carrega em si a idéia de não-esquecível, não-obscurecido, não-velado e, por fim, não-coberto; decorrem daí as noções de Verdade como desvelamento ou descoberta. P. 57.
Ø ... a idéia de Verdade como descoberta é uma costrução. P. 58.
1. Elos históricos do paradigma grego
Ø Os gregos são um povo com uma contribuição histórica particularmente especial para o Ocidente: a maioria dos nossos parâmetros lingüísticos, estéticos, políticos, filosóficos e científicos tem como matriz inicial a civilização grega da Antigüidade, à qual se(p.58) somou o legado moral e religioso judaico-cristão e, ainda, a experiência da Roma Antiga no campo do Direito e do Estado.
A Grécia, situada à beira dos mares mediterrâneo, Adriático, Jônico e Egeu, e próxima às passagens para o Oriente asiático e europeu, teve um contato bastante facilitado com outros povos (menos internamente, em função de seu relevo montanhoso), tornando-se mais permeável à absorção de conteúdos de outras culturas e propagando mais facilmente a sua própria. Ps. 58/59.
Ø ... as últimas palavras de Sócrates perante o tribunal: "A hora da partida chegou, e nós seguimos nossos caminhos - para mim, morrer; para vocês, viver. Qual é o melhor, só Deus sabe". P. 78.
Ø ... defensores da importância da percepção sensível e de que todo conhecimento provém da experiência, com ela deve ser provado, à cata da descoberta das leis estáveis da natureza.
Três alemães tentarão resolver o impasse: Kant (1724-1804), Hegel (1770-1831) e Husserl (1859-1938).
Kant produziu uma junção das duas linhas em oposição, admitindo a existência de conhecimentos verdadeiros inatos (sobre os quais não podemos ter certezas e que eventualmente intuímos) e conhecimentos apreendidos com a experiência (os únicos(p.96) que de fato, conhecemos, mas que não são a essência da realidade); o impasse ficou mais forte ainda, porque oscilou entre um ceticismo (nada pode ser verdadeiramente sabido) e um racionalismo baseado na intuição improvável.
Hegel pega uma via paralela, afirmando que a realidade é a Idéia (inicialmente contida no sujeito humano) que, ao exteriorizar-se em forma de ação no mundo (enfrentando a materialidade para impor-se), depura-se e volta mais aperfeiçoada para o sujeito que, assim, descobre a si mesmo na autoconsciência; ao supor que a Humanidade, a Natureza e a História são manifestações de um Espírito Absoluto, o pensamento hegeliano recorre novamente ao idealismo.
Husserl, procurando evitar o risco de ceticismo quanto ao conhecimento das essências da realidade (presente em Kant) propõe que entendamos os objetos do conhecimento como fenômenos (sentidos que vêm à tona) dos quais devemos, em um primeiro momento, abstrair tudo que não é essencial e, a seguir, deixemos a razão (livre de determinações externas) neles mergulhar, para que possam revelar-se em sua pureza verddeira. Ps. 96/97.
Ø Queremos dizer, em resumo, que a relação de Conhecimento é uma relação entre sujeito e objeto; tem que haver um sujeito que conhece e um objeto que é conhecido, mas a verdade não está nem no pólo do sujeito, nem no pólo do objeto e sim na relação entre eles.
Ø Esta relação se dá no tempo humano que chamamos de história. Portanto, a Verdade é histórica, não sendo nem absoluta nem eterna. Mais ainda: essa relação não é somente entre mim e o mundo, pois eu não sou sozinho e a história é feita coletivamente. A relação com o mundo não é individual, mas coletiva, social. assim, a Verdade não apenas é histórica como também é social porque a relação com o mundo é social. p. 98.
Ø Cabe enfatizar: o Conhecimento e, nele, a Verdade, são construções históricas, sociais e culturais. São resultantes do esforço de um grupo determinado de homens e mulheres (com os elementos disponíveis na sua cultura e no tempo em que vivem) para construir referências que orientem o sentido da ação humana e o sentido da existência.
Por isso, é crucial produzirmos uma reflexão em torno da relação entre a Educação e o Conhecimento como construção. P. 99.
Ø "A distinção entre o verdadeiro e o falso aplica-se às idéias, não aos sentimentos. Um sentimento pode ser superficial, mas não, mentiroso". (Arthur Koestler). P. 100.
CAPÍTULO 3
A Escola e a Construção do Conhecimento
Ø Como apontamos no capítulo anterior, uma das questões cruciais para as nossas práticas pedagógicas é a concepção sobre o Conhecimento dentro da sala de aula; no mais das vezes, o Conhecimento é entendido como algo acabado, pronto, encerrado em si mesmo, sem conexão com sua produção histórica. P. 101.
1. Relativizar: caminho para romper a mitificação
Ø Quando um educador ou uma educadora nega (com ou sem intenção) aos alunos a compreensão das condições culturais, históricas e sociais de produção do Conhecimento, termina por reforçar a mitificação e a sensação de perplexidade, impotência e incapacidade cognitiva. P. 102.
2. Intencionalidade, erro e pré-ocupação
Paulo Freire, ao pensar sobre a questão do método, disse "fazemos, logo pensamos; assim, existimos" e, em resumo, o fez a partir da seguinte reflexão:
. O saber pressupõe uma intencionalidade, ou seja, não há busca de saber sem finalidade. Dessa forma, o método é, sempre, a ferramenta para a execução dessa intencionalidade; como ferramenta, o método é uma escolha e, como escolha, não é neutro.
. O melhor método é aquele que propuser a melhor aproximação com o objeto, isto é, aquele que propiciar a mais completa consecução da finalidade. No entanto, o método não garante a exatidão pois esta está relacionada à aproximação com a Verdade e o método é apenas garantia de rigorosidade.
. A aproximação com a Verdade depende da intencionalidade e esta é sempre social e histórica; assim, a exatidão não se coloca nunca como absoluta, eterna e universal, pois a intencionalidade também não o é. A intencionalidade está inserida no processo de as mulheres e os homens produ-(p.111) zirem o mundo e serem por ele produzidas e produzidos, com seus corpos e consci6encias e nos seus corpos e consciências.
. Assim, cada uma e cada uma de nós é também método, pois corpos e consciências são ferramentas de intencionalidade (conscientes ou não). É por isso que o anunciado, para vir, tem de ser feito por nós como geradores de intenção e também como métodos que somos; se não, não virá!
. Assim existimos: fazendo. E, porque fazemos, pensamos. E, porque pensamos, fazemos nossa existência. É por isso que a prática de pensar a prática - o que fazemos - é a única maneira de pensar - e de fazer - com exatidão.
Essa é a única razão básica pela qual o ensino do conhecimento científico precisa reservar um lugar para falar sobre o erro; o conhecimento é resultado de processo e este não está isento de equívocos, isto é, não fica imune aos embaraços que o próprio ato de investigar a realidade acarreta.
O erro não ocupa um lugar externo ao processo de conhecer; investigar é bem diferente de receber uma revelação límpida, transparente e perfeita. O erro é parte integrante do conhecer não porque "erra é humano", mas porque nosso conhecimento sobre o mundo dá-se em uma relação viva e cambiante (sem o controle de toda e qualquer interveniência) com o próprio mundo. Ps. 111/112.
Ø O escrito brasileiro Millôr Fernandes (1924- ) tem um pensamento para opor-se aos que, por exemplo, afirmam que o "computador não erra". Diz ele: "Erra, e muito, e gravemente. Mas, admitindo-se que não(p.113) erra, esse é seu erro maior. A humanidade, o pouco que avançou, avançou porque o cérebro humano não tem certezas; experiência e erro é seu destino" (Fernandes, 1994:92). P. 114.
Ø Não há conhecimento que possa ser apreendido e recriado se não se mexer, inicialmente, nas preo-(p.115) cupações que as pessoas detêm; é um contra-senso supor que se possa ensinar crianças e jovens, principalmente, sem partir das preocupações que eles têm, pois, do contrário, só se conseguirá que decorem (constrangidos e sem interesse) os conhecimentos que deveriam ser apropriados (tornados próprios). Ps. 115/116.
Ø Entretanto, fica cada vez mais evidente que parte substancial do desinteresse (e da "indisciplina") encontrado em muitos dos nossos alunos pode ser atribuído ao distanciamento dos conteúdos programáticos em relação às preocupações que os alunos trazem para a escola. Essas preocupações raramente são conhecidas por nós, educadores; com freqüência supomos que qualquer conteúdo, a priori, é valido e deve interessar aos aprendizes, pois, afinal, foi por nós escolhido e "sabemos o que é bom para eles". P. 116
3. Ritualismos, encantamentos e princípios
Ø O resultado mais forte desse apartamento entre o universo vivencial dos alunos e os conteúdos escolares dá-se na deferente avaliação sobre a escola que é feita por docentes e discentes.
Dizemos nós: "eles não querem saber de nada"; dizem eles: "as aulas não têm nada a ver comigo". Conclusão nossa: "eles não gostam da escola". Não é verdade; quase todas as crianças gostam da escola. Do que, talvez, não gostem muito, é das nossas aulas.
Vamos enxergar um pouco para obter um efeito reflexivo: é só observar a alegria com a qual chegam, a algazarra no portão, os gritos no pátio; de repente, toca o sinal e vão, cabisbaixas, para a sala de aula, onde ficarão, quietinhas ( à força?). Toca o sinal do intervalo, saem correndo, esfuziantes, colocando em risco até a própria segurança; acabado o intervalo, retornam melancólicas. Hora de ir embora porque terminaram as aulas ou faltou um professor? Não querem; ficam pelos corredores e portões rindo, brincando, conversando. Precisamos despachá-los, pois adoram a escola.(p.117)
E das nossas aulas? Nem tanto. Já pensou: os jovens têm 13, 14, 15 anos de idade, estão com os hormônios fervendo, o mundo para explorar, os corpos se modificando e... nós os colocamos por quatro horas ou mais dentro de uma sala, em móveis desconfortáveis de madeira, sem se mexer muito e silenciosos.
Estando ali reclusos, passamos a ensinar coisas "interessantíssimas" para eles: a diferença entre um adjunto adnominal e um complemento nominal; a capital da Tanzânia; os afluentes da margem esquerda e direita do rio Amazonas; o nome dos sete primeiros reis de Roma (os quatro latinos e os três etruscos); o que é uma mitocôndria; como se calcula a trajetória de um projétil disparado por um canhão; como se extrai a raiz quadrada; e por coroar, mandamos que leiam Amor de Perdição do Camilo Castelo Branco (com sua passionalidade trágica do século XIX). E eles não gostam muito; preferem, se conseguirem escapar, ir namorar, passear etc.
Não são poucos os momentos em que o ambiente físico e simbólico da sala de aula se assemelha, para eles, a um local de culto religioso não-voluntário ou de teatro desinteressante; até a distribuição espacial lembra circunstâncias anacrônicas (mesmo com a entrada em cena de novos equipamentos eletrônicos). Ps. 117/118.
Ø Para uma infinidade de educadores, a sala de aula é um lugar de culto, com as seguintes características:
. A sala é lugar de uma cerimônia com rituais quase religiosos: a aula. Como o interior de um templo, requer silêncio obsequioso, um celebrante que domine os instrumentos do culto e fiéis conscientes de sua fragilidade na produção da cerimônia.
. Como em um culto, nesse lugar a disposição espacial obedece à hierarquia: o celebrante à frente, no lugar principal, com espaço para movimentar-se e um mobiliário diferente e destacado dos demais da sala, com dimensões amplas para poder espalhar os instrumentos, aos fiéis cabe arrumarem-se ordenadamente, em filas ou círculos, nos móveis menores.
. É o celebrante que dá início ao culto, quem o dirige e quem tem poder de interrompê-lo ou encerrá-lo; há muitas partes da cerimônia que são(p.120) recorrentes, repetitivas até, e isso propicia segurança a todos os presentes.
. O que dá legitimidade maior ou menor ao celebrante é sua capacidade de operar as ferramentas do culto (fórmulas escritas, procedimentos, enunciados espontâneos e domínio vocálico apropriado), instaurando, assim, uma ponte de ascendência sobre os participantes, que devem estar convencidos da necessidade de alguém que os guie no mundo do desconhecido.
. Deve também o celebrante ser dotado de algumas características pessoais, além do domínio dos instrumentos: ser paciente e compreensivo com as dificuldades inatas aos participantes - afinal, por tê-las é que estão ali; manifestar uma bondade segura e uma assepsia moral - sinais de distinção em meio a todos - e, por fim, ser severo quando preciso, pois é marca da autoridade e meio de correção.
. Dos demais participantes é esperado que se pronunciem quando avocados, preparem-se previamente para presenciar a exposição de mistérios, confessem e reconheçam seus erros, submetam-se às provações indispensáveis para se corrigirem e, finalmente, compreendam que esse é o único meio de ultrapassar as limitações.
Para outros tantos em Educação, a sala de aula é um ambiente teatral, marcado por situações como as que se seguem:
. A sala é o lugar de um espetáculo com cenas quase teatrais: a aula. Como o interior de um teatro, requer atenção contínua, um ator principal(p.121) que saiba interpretar e catalisar os sentidos, e uma platéia disposta a viver voluntariamente emoções.
. Nessa sala, a distribuição do espaço é orientada, no mais das vezes, para situar o ator em um nível de altura acima da platéia, de modo a ser visto por todos e também destacar-se, ocupando o sítio de honra; o espaço do ator é bastante amplo em relação ao restante, permitindo a ele uma liberdade de movimentação que avança, inclusive, pelo lugar destinado à platéia. Essa, por sua vez, encontra-se disposta em fileiras ou em formato de arena, desde que o ponto de referência seja o ator.
. A platéia, quando vem para o lugar, já tem alguma noção do tema da peça, mas desconhece o enredo; em algumas peças aí representadas a platéia é chamada também a participar ativamente sem, no entanto, determinar o quê nem quando o fará.
. É muito difícil nesse lugar a apresentação de enredos produzidos pelo ator; freqüentemente ele desempenha um papel ensaiado, recorrendo, quando preciso, ao ponto. Contudo, nas oportunidades em que o ator também é o autor, ou quando dá a sua própria interpretação ao enredo, a representação torna-se uma presentação e as emoções ficam muito mais verdadeiras.
Nem sempre a peça é adequada para o tipo de platéia ou tem para ela uma significação explícita; porém, ela a assiste, por hábito ou apatia, até o final (os que saem antes são olhados com reprovação pelos outros e pelo artista). Muitos que não(p.122) entendem a peça até imaginam que a responsabilidade pela não-compreensão é deles mesmos.
Pode parecer estranho invadir uma reflexão sobre a construção do construção do conhecimento com essas considerações, mas um dos componentes fulcrais do comportamento infantil e adolescente é o lúdico (que nós, os adultos, parcialmente represamos em nós, e neles) e a amorosidade, e a sala de aula deve ser, portanto, antes de todo o mais, o lugar de uma situação com contornos amorosos: a aula.
Como o interior de uma relação afetiva, a aula impõe dedicação, confiança mútua, maleabilidade e prazer compartilhado.
No lugar dessa relação, o tamanho, arranjo e localização dos móveis não têm muita importância, desde que a partilha seja agradável e justa. Cada um dos envolvidos nessa situação traz o que já tinha para trocar, só que a troca não deve levar a perdas; por ser uma repartição de bens, todos precisam esforçar-se para que cada um fique com tudo.
. Por ser um lugar de relações afetivas, a sala de aula é um espaço para confrontos, conflitos, rejeições, antipatias, paixões, adesões, medos e sabores. Por isso, essa sala exala humanidade e precariedade; a tensão contínua do compartir conduz, às vezes, a rupturas emocionadas ou a dependências movidas(p.123) pelo temor da solidão; afinal, ser humano é ser junto, e ser junto implica um custo sensível.
Por isso, é claro que aqueles conteúdos aparentemente fúteis (que ironizamos quando falamos do gostar da escola/não gostar das aulas) podem ser ensinados, desde que se faça partindo das ocupações prévias que alunas e alunos carregam, contextualizando-os e inserindo os temas em um cenário não-esotérico e marcado pela alegria.
A busca do prazer e do gostar do que está fazendo integra prioritariamente o universo discente e o universo da criatividade. É difícil imaginar que Newton, Mozart, Fernando Pessoa, Michelângelo, Tom Jobim, por exemplo, não tivessem no prazer uma das suas fontes de animação, sem por isso deixar de envolver-se com atividades que exigem concentração e esforço.
Assim, a criação e recriação do conhecimento na escola não está apenas em falar sobre coisas prazerosas, mas, principalmente, em falar prazerosamente sobre as coisas; ou seja, quando o educador exala gosto pelo que está ensinando, ele interessa nisso também o aluno. Não necessariamente o aluno vai apaixonar-se por aquilo, mas aprender o gosto é parte fundamental para passar a gostar.
Seriedade não é, e nem pode ser, sinônimo de tristeza. O ambiente alegre é propício à aprendizagem e à criatividade, desde que não se ultrapasse a sutil fronteira entre a alegria e a desconcentração improdutiva.
A alegria vem, em grande parte, da leveza com a qual se ensina e se aprende; vem da atenção(p.124) àquelas perguntas que parecem fora do assunto, mas que vão capturar o aluno para um outro passeio pelos conteúdos; vem da percepção de que aquilo que se está estudando tem um sentido e uma aplicabilidade (mesmo não imediata).
A alegria, em suma, é resultante de um processo de encantamento recíproco, no qual a transação de conhecimentos e preocupações não unilateral. A sala de aula é, simbolicamente, um lugar de amorosidade; mas a amorosidade não é um símbolo, é um sentir. Não pode ser anulada (como o símbolo pode); só ausentar-se.
Partir das preocupações dos alunos não é o mesmo que nelas permanecer indefinidamente; ademais, levar em contar é bem diverso de acatar passivamente.
Partir das preocupação dos alunos não é o mesmo que nelas permanecer indefinidamente; ademais, levar em conta é bem diverso de acatar passivamente.
Em outras palavras, nós, educadores, precisamos ter o universo discente como princípio (ponto de partida), de maneira a atingir a meta (ponto de chegada) do processo pedagógico; afinal de contas, a prática educacional tem como objetivo central fazer avançar a capacidade de compreender e intervir na realidade para além do estágio presente, gerando autonomia e humanização.
Muita confusão já foi gerada nessa relação entre o levar em conta e o acatar. Quantas vezes o pensa-(p.125) mento de Paulo Freire não foi, equivocadamente, acusado de desprazer os conteúdos científicos no processo de escolarização, dando um destaque ao universo vivencial dos educandos?
Muitos, inclusive, caem na armadilha de afirmar que, se desejamos colaborar na formação política e educacional das classes populares, não podemos com elas trabalhar a "ciência burguesa"; ora, a Ciência pode estar sob controle da classe dominante, mas não é inútil (tanto que é difícil arrancá-la de seus circunstanciais proprietários). Ela resulta de uma produção cultural coletiva, cuja apropriação particularizada e restrita é uma situação a ser socialmente derrotada.
Paulo Freire (defensor extremado de uma educação globalmente libertadora) não seria ingênuo a ponto de sugerir um "seqüestro" do caráter energicamente ferramental do conhecimento científico, de modo a tornar os oprimidos "reféns" de um saber tipicamente empírico e menos eficaz no embate político pela igualdade social. Ps. 120/121/122/123/124/125/126.
Ø O fato é que,, por uma questão de sobrevivência, o homem é obrigado a enfrentar, a lutar com o mundo, alterando este e sendo alterado por ele. Ocorre que, no desenrolar da história da humanidade e, hoje, em quase a totalidade das sociedades, a luta principal Homem versus Mundo foi substituída por um embate secundário, que é Homem versus Homem. Se o conhecimento não só não é neutro, como(p.126) também é político, ou seja, produzido a partir de um interesse, ele está certamente presente nesse confronto Homem versus Homem.
O conhecimento não interessa mais tanto por uma questão de sobrevivência, como ocorria na relação Homem versus Mundo, mas na oposição entre os homens; ele tem relevância sobretudo na luta pelo poder.
Reafirmaremos uma questão básica: se o Conhecimento é relativo à história e à sociedade, ele não é neutro; todo conhecimento está úmido de situações histórico-sociais; não há Conhecimento absolutamente puro, sem nódoa. Todo Conhecimento está impregnado (ou, com sotaque italiano, emprenhado) de história e sociedade, portanto, de mudança cultural.
A escola está grávida de história e sociedade, e, sendo esse processo marcado pela relações de poder, o Conhecimento é também político, isto é, articula-se com as relações de poder. Sua transmissão, produção e reprodução no espaço educativo escolar decorre de uma posição ideológica (consciente ou não), de uma direção deliberada e de um conjunto de técnicas que lhes são adequadas.
Desta forma, é preciso que recoloquemos o problema de seu sentido social concreto. Ps. 126/127.
Ø "Acontece que um homem não atinge a condição de Galileu simplesmente por ter sido perseguido; ele também precisa estar certo". (Stephen Jay Gould)
CAPÍTULO 4
Conhecimento escolar: epistemologia e política
1. A relação sociedade/escola: alguns apelidos circunstanciais
Ø A atenção aguda à realidade social circunstante dos alunos é elemento basilar para a construção coletiva de uma escolarização que conduza à autonomia e à cidadania livre.
Quando analisamos o fracasso escolar (epidemia terrível entre nós e que prefiro chamar de pedagocídio), sustentado pelos pilares da evasão e da repetência, é usual serem apontadas causas extra-escolares: precárias condições econômicas e sociais da população, formação histórica colonizada, poderes públicos irresponsáveis ou atrelados aos interesses de uma elite predatória etc. Todas essas são causas reais e impactantes, mas não são as únicas. P. 141.
Ø A Educação e a Escola são os lugares nos quais podemos dizer e exercer mais fortemente o nosso não. Não à miséria; não a injustiça; não à contradição humano versus humano; não à Ciência exclusivista; não ao poder opressor.
Tenho uma suspeita: por causa da paixão. Paixão pelo quê? Por ganhar pouco, trabalhar muito, e toda noite querer desistir, e no dia seguinte, de manhãzinha, estar, de novo, na escola? Vinte, trinta (aposenta e volta) quarenta ou mais anos na profissão, alimentando o corpo docente nas reuniões movidas a café, chá e bolacha?
Não. Paixão por uma idéia irrecusável: gente foi feita para ser feliz! E nesse é o nosso trabalho; não só nosso, mas também nosso. Paixão pela inconformidade de as coisas serem como são; paixão pela derrota da desesperança; paixão pela idéia de, procurando tornar as pessoas melhores, melhorar a si mesmo ou mesma; paixão, em suma, pelo futuro. P. 157.
Ø A nova realidade social a ser parida também por nós educadores é mais do que uma espera (nostalgia do futuro); é um escavar no hoje de nossas prática à procura daquilo que hoje pode ser feito. Esse hoje é uma das pontas do nó do futuro a ser desatado, fruto de situações que não se alteram por(p.158) si mesmas nem se resolvem com um "ah! Se eu pudesse..." "ah!, no meu tempo". ...
Nosso tempo, o dos educadores, é esse hoje em que já se encontra, em gestação, o amanhã. Não um qualquer, mas um amanhã intencional, planejado, provocado agora. Um amanhã sobre o qual não possuímos certezas, mas que sabemos possibilidades. Ps. 158/159.
Ø É nessa paixão pelo humano que habita, de forma convulsiva, a tensão articulada entre o epistemológico e o político, onde se dá o encontro do sonho de um Conhecimento como ferramenta de Liberdade e de um Poder como amálgama da convivência igualitária.
Há um ditado chinês que diz que, se dois homens vêm andando por uma estrada, cada um carregando um pão, e, ao se encontrarem, eles trocam os pães, cada homem vai embora com um; porém, se dois homens vêm andando por uma estrada, cada um carregando um idéia, e, ao se encontrarem, eles trocam as idéias, cada homem vai embora com duas.
Quem sabe é esse mesmo o sentido do nosso fazer: repartir idéias, para todos terem pão... p. 159.
Ø "Não lhe perguntem mais nada. O mestre falou. Agora, é interpretá-lo, nas nuanças chinesas do seu falar murado. Ele não tem obrigação de ser claro. Muitas reputações de mestre faleceriam, submetidas à prova da clareza". (Carlos Drummond de Andrade). P. 160.
2 comentários:
Muito Bom.
Me deu uma outra visão sobre pequenos fatos que por não conhecer perdemos na nossa existência.
Gostei muito desse livro e de você te-lo colocado no seu blogger. Suas coordenações com certeza são de qualidade. Um abraço.
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