SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de
identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte:
Autêntica, 1999. 156 p. [Resenha]*
Neste livro encontramos um panorama
das teorias do currículo, a partir de vários estudos e autores que
abordam a origem do campo do currículo, passando pelas teorias
tradicionais, críticas e pós-críticas e tratando introdutoriamente cada
uma dessas perspectivas, assim como os principais conceitos e
definições que elas enfatizam.
O autor levanta indagações essenciais
sobre o currículo, tais como: o que é uma teoria do currículo? Onde
começa e como se desenvolve a história das teorias do currículo? Quais
são as principais teorias do currículo? O que distingue as teorias
tradicionais das teorias críticas do currículo? E estas das
pós-críticas?
Antes, porém, o autor fala sobre sua
compreensão de teoria do currículo. Para Silva, definições não revelam
uma suposta ‘essência’ do currículo: “uma definição nos revela o que
uma determinada teoria pensa que o currículo é” (p. 14). Segundo ele, há
questões que toda teoria do currículo enfrenta: qual conhecimento deve
ser ensinado? O que eles (alunos) ou elas (alunas) devem ser, ou
melhor, que identidades construir? Com base em quais relações de poder
serão essas perguntas respondidas?
O texto está dividido em duas partes.
A primeira aborda teorias tradicionais e teorias críticas, apresentando
a origem dos estudos sobre currículo, a gênese das teorias críticas e
estudos de vários autores, entre eles: Michael Apple, Henry Giroux,
Paulo Freire, Demerval Saviani etc. A segunda parte aborda as teorias
pós-críticas, ressaltando os conceitos de: a) identidade, alteridade e
diferença; b) subjetividade; c) significação e discurso; d)
saber-poder; e) representação; f) cultura; g) gênero, raça, etnia e
sexualidade; h) multiculturalismo.
PARTE I – DAS TEORIAS TRADICIONAIS ÀS CRÍTICAS
Os estudos sobre currículo nascem nos
Estados Unidos,1 onde se desenvolveram duas tendências iniciais. Uma
mais conservadora, com Bobbitt, que buscava igualar o sistema
educacional ao sistema industrial, utilizando o modelo organizacional e
administrativo de Frederick Taylor. Bobbitt encontrou ainda suporte na
teoria de Ralph Tyler e na de John Dewey. O primeiro defendia a idéia
de organização e desenvolvimento curricular essencialmente técnica. Por
sua vez, John Dewey se preocupava com a construção da democracia
liberal e considerava relevante a experiência das crianças e jovens,
revelando uma postura mais progressivista.
Na década de 1960 ocorreram grandes
agitações e transformações. Nesse contexto começam as críticas àquelas
concepções mais tradicionais e técnicas do currículo. “As teorias
críticas do currículo efetuam uma completa inversão nos fundamentos das
teorias tradicionais” (p. 29). Entre os estudos pioneiros está a obra A
ideologia e os aparelhos ideológicos de Estado, de Louis Althusser.
Sua teoria diz que “a escola contribui para a reprodução da sociedade
capitalista ao transmitir, através das matérias escolares, as crenças
que nos fazem vê-la como boa e desejável” (p. 32). Já a escola
capitalista, de Bowles e Gintis, “enfatiza a aprendizagem, através da
vivência das relações sociais da escola, das atitudes necessárias para
se qualificar um bom trabalhador capitalista” (p. 3233). Por fim, A
reprodução, de Bourdieu e Passeron, afirma que o currículo está baseado
na cultura dominante, o que faz com que crianças das classes
subalternas não dominem os códigos exigidos pela escola.2
Voltando aos Estados Unidos, vemos
que, a partir dos anos 70, tendo como marco inicial a I Conferência
sobre Currículo, liderada por William Pinar, surgem duas tendências
críticas no campo do currículo, as quais vêm se opor às teorias de
Bobbitt e Tyler. A primeira de caráter marxista, utilizando-se, por
exemplo, de Gramsci e da Escola de Frankfurt. A segunda de orientação
fenomenológica e hermenêutica. Aquela enfatizando “o papel das
estruturas econômicas e políticas na reprodução social” (p. 38); esta
enfatizando “os significados subjetivos que as pessoas dão às suas
experiências pedagógicas e curriculares” (p. 38).
Michael Apple, um dos expoentes nesse
âmbito, parte dos elementos centrais do marxismo, colocando o
currículo no centro das teorias educacionais críticas e relacionando-o
às estruturas mais amplas, contribuindo assim para politizá-lo. “Apple
procurou construir uma perspectiva de análise crítica do currículo que
incluísse as mediações, as contradições e ambigüidades do processo de
reprodução cultural e social” (p. 48).
Já o currículo como política
cultural, de Henry Giroux, fala numa “pedagogia da possibilidade” (p.
53) que supere as teorias de reprodução. Ele utiliza estudos da Escola
de Frankfurt sobre a dinâmica cultural e a crítica da racionalidade
técnica. Compreende o currículo a partir dos conceitos de emancipação e
liberdade, já que vê a pedagogia e o currículo como um campo cultural
de lutas.
De fato, suas análises se ocupam mais
com aspectos culturais do que propriamente educacionais. Ultimamente,
Giroux incorporou contribuições do pós-modernismo e do
pós-estruturalismo.
Outro autor de destaque é Paulo
Freire. Sua teoria é claramente pedagógica, não se limitando a analisar
como é a educação existente, mas como deveria ser. Sua crítica ao
currículo está sintetizada no conceito de educação bancária. Por outro
lado, concebe o ato pedagógico como um ato dialógico em que educadores e
educandos participam da escolha dos conteúdos e da construção do
currículo. Antecipa a definição cultural sobre os estudos curriculares e
inicia uma pedagogia pós-colonialista. Nos anos 80, Freire seria
contestado pela pedagogia dos conteúdos, proposta por Demerval Saviani.
Este autor critica a pedagogia pós-colonialista de Freire por
enfatizar não a aquisição do saber, mas os métodos desse processo; para
ele conhecimento é poder, pois a apropriação do saber universal é
condição para a emancipação dos grupos excluídos.
Já a ‘nova’ sociologia da educação3
busca construir um currículo que reflita mais as tradições culturais e
epistemológicas dos grupos subordinados. Essa corrente se dissolveu numa
variedade de perspectivas analíticas e teóricas: feminismo, estudo
sobre gênero, etnia, estudos culturais, pós-modernismo,
pós-estruturalismo etc. Nesse âmbito, Bernstein investiga como o
currículo é organizado estruturalmente. Distingue dois tipos
fundamentais de organização: no currículo tipo coleção “as áreas e
campos de saber são mantidos fortemente isolados” (p. 72); no tipo
integrado “as distinções entre as áreas de saber são muito menos nítidas
e muito menos marcadas” (p. 72). O autor quer compreender como as
diferentes classes sociais aprendem suas posições de classe via escola.
Elabora então o conceito de códigos: no elaborado “os significados
realizados pela pessoa – o ‘texto’ que ela produz – são relativamente
independentes do contexto local” (p. 75); no restrito “o ‘texto’
produzido na interação social é fortemente dependente do contexto” (p.
75). Para ele o código elaborado é suposto pela escola, mas crianças de
classe operária possuem códigos restritos, o que estaria na base do
seu ‘fracasso’ escolar.
Ainda de acordo com Bernstein, o
currículo oculto, conceito fundamental na teoria do currículo,
“constitui-se daqueles aspectos do ambiente escolar que, sem fazer
parte do currículo oficial explícito, contribui de forma implícita para
aprendizagens sociais relevantes” (p. 78). Na análise funcionalista o
currículo oculto ensina noções tidas como universais, necessárias ao
bom funcionamento das sociedades “avançadas”; já as perspectivas
críticas, ao denunciálo, dizem que ele ensina em geral o conformismo, a
obediência, o individualismo, a adaptação às injustas estruturas do
capitalismo. Já as pós-críticas consideram importante incluir aí as
dimensões de gênero, sexualidade, raça etc.
PARTE II – AS TEORIAS PÓS-CRÍTICAS
Segundo Silva o fenômeno chamado
multiculturalismo tem sua origem nos países dominantes do norte e é
discutido atualmente em duas vertentes: “... dos grupos culturais
dominados no interior daqueles países para terem suas formas culturais
reconhecidas e representadas na cultura nacional” (p. 85); e outra que
aponta”... solução para os problemas que a presença de grupos raciais e
étnicos coloca no interior daqueles países para a cultura nacional
dominante” (p. 85). Para ambas as vertentes o multiculturalismo
representa um importante instrumento de luta política, pois ele remete à
seguinte questão: o que conta como conhecimento oficial? Assim, ele
também nos lembra que “a igualdade não se obtém simplesmente através da
igualdade de acesso ao currículo hegemônico” (p. 90), sendo preciso
mudanças substanciais do currículo existente.
Já a pedagogia feminista introduz
novas questões no tocante às formas de reprodução e produção de
desigualdades sociais através da questão de gênero, ampliando o processo
de reprodução cultural para além da dinâmica de classe, já bastante
reconhecida pelas teorias críticas, que em relação às teorias
feministas ignoram outras dimensões da desigualdade (como a de gênero).
No tópico seguinte Silva aborda o
currículo como narrativa étnica e racial, reafirmando uma superação e
ampliação do pensamento curricular crítico que aponta a dinâmica de
classe como única no processo de reprodução das desigualdades sociais. O
autor alerta para questões como etnia, raça e gênero, configurando um
novo repertório educacional significativo. Insistindo nesse processo,
afirma que tais questões apenas recentemente estão sendo
problematizadas dentro do currículo, a partir de análises
pós-estruturalistas e dos estudos culturais: “é através do vínculo
entre conhecimento, identidade e poder que os temas da raça e da etnia
ganham seu lugar no território curricular” (p. 101).
Uma outra tendência inserida nessa
discussão é a teoria “queer”, que “radicaliza o questionamento da
estabilidade da fixidez da identidade feito pela teoria feminista
recente” (p. 105). Essa teoria questiona o predomínio da
heterossexualidade como a identidade considerada normal, discutindo a
forma como os processos discursivos de significação tentam fixar
determinada identidade sexual. Segundo esse pensamento, “nós somos o
que nossa suposta identidade define que somos” (p. 107). Isto é,
o que se torna, assim, uma atitude epistemológica que não se restringe à identidade e ao conhecimento sexuais, mas que se estende para o conhecimento de identidade. A Epistemologia que é, nesse sentido, perversa, subversiva, impertinente, profana desrespeitosa. (p. 107)
Para as teorias pós-modernas (que não
se resumem a uma única vertente ou teoria social) vivemos uma nova
cena histórica, com novas implicações no campo educacional. Basicamente
elas criticam conceitos e discursos da modernidade, como, por exemplo,
razão, ciência e progresso. As implicações curriculares desse movimento
estão na desconfiança de uma pedagogia e um currículo fundamentados no
pensamento moderno, isto é, que se caracterizem por: a) saber
totalizante; b) razão iluminista; c) progresso cumulativo; d) axiomas
inquestionáveis; e) sujeito racional, livre e autônomo.
O pós-estruturalismo enfatiza os
jogos de linguagem e a realidade como um “texto”. De acordo com essa
teoria, a fixidez dos significados se torna fluida, indeterminada. Daí,
por exemplo, a radicalização pós-estrutural do conceito de diferença,
que viria substituir o de desigualdade, típico da modernidade. Segundo o
pósestruturalismo, o sujeito racional, autônomo e centrado da
modernidade é uma ficção, pois “não existe sujeito a não ser como
simples e puro resultado de um processo cultural e social” (p. 120).
Assim, um currículo, para essa teoria, questionaria os significados
transcendentais ligados à religião, à política, à pátria, à ciência
etc., que povoam o currículo existente.
A teoria pós-colonialista objetiva
refletir sobre as relações de poder advindas da herança colonial, tais
como o imperialismo econômico e cultural. Reivindica um currículo que
inclua as diferentes culturas, não de forma simples e informativa, mas
refletindo sobre aspectos culturais e experiências de povos e grupos
marginalizados.
Os estudos culturais constituem um
campo de investigação cujo impulso inicial foi estudar a cultura
através de grandes obras literárias (e não só estas), tidas como
burguesas e elitistas – função semelhante à da mídia e seu papel na
formação de consenso e conformismo político –, mas concentrando-se
também na análise da indústria cultural (revistas, cinema etc.). Silva
ressalta que esses estudos, assim como o pós-modernismo e o
pós-estruturalismo, não influenciam de forma significativa o processo
de elaboração curricular, mas aponta que dentro do contexto atual tais
estudos apresentam conceitos relevantes à visão crítica do currículo,
especialmente por entenderem a cultura como campo de disputa simbólica
pela afirmação de significados.
Pedagogia como cultura, e a cultura
como pedagogia, é outro ponto destacado pelo autor para explicar uma
das conseqüências da virada culturalista na teorização curricular, na
qual percebese uma redução das fronteiras entre conhecimento
acadêmico/escolar e conhecimento cotidiano/cultura de massa. O
“currículo” e a “pedagogia” dessas formas culturais extra-escolares
possuem imensos recursos econômicos e tecnológicos, como exigência de
seus objetivos quase sempre mercadológicos. Investe-se assim de for-mas
sedutoras irresistíveis, inacessíveis à escola. “É precisamente a
força desse investimento das pedagogias culturais no afeto e na emoção
que tornam seu ‘currículo’ tão fascinante à teoria crítica do currículo”
(p. 140).
O autor conclui reafirmando que o
currículo “é uma questão de saber, poder e identidade” (p. 148), fazendo
ainda uma relação entre as teorias críticas e pós-críticas do
currículo: as teorias póscríticas podem nos ter ensinado que o poder
está em toda parte e que é multiforme. As teorias críticas não nos
deixam esquecer, entretanto, que algumas formas de poder são
visivelmente mais perigosas e ameaçadoras do que outras (p. 147).
Na visão do autor, depois de conhecer
as teorias críticas e pós-críticas, torna-se impossível conceber o
currículo de forma ingênua e desvinculado de relações sociais de poder.
Para as teorias críticas isso significa nunca esquecer, por exemplo, a
determinação econômica e a busca de liberdade e emancipação; e para as
pós-críticas significa questionar e/ou ampliar muito daquilo que a
modernidade nos legou.
COMENTÁRIOS GERAIS
O livro desperta interesse para
iniciantes, sobretudo porque resgata o essencial da discussão de
currículo, desde a origem até seus últimos desenvolvimentos. Nesse
sentido, o autor, ao apresentar as teorias tradicionais, críticas e
pós-críticas nunca afirma que uma única teoria ou ‘tendência’ pode,
sozinha, esgotar toda compreensão sobre este artefato cultural complexo
que é o currículo. Por outro lado, o livro contém algumas
contradições, pois enquanto alguns conceitos, definições e teorias
tornam-se mais fáceis de ser assimiladas após a leitura (por exemplo,
currículo, conhecimento escolar, cultura, identidade, poder etc.),
outros já exigem um domínio prévio de fundamentos teóricos que comumente
iniciantes não possuem (por exemplo, modernismo e pós-modernismo,
estruturalismo e pós-estruturalismo etc.). No entanto, os que desejarem
continuar aprofundando seus estudos sobre currículo poderão lançar mão
das referências bibliográficas indicadas pelo autor.
ALGUMAS QUESTÕES
É preciso refletir sobre a distância
entre toda esta teorização acadêmica enfocada por Silva e a realidade
da escola pública em Goiás. Como encurtá-la? Como fazer isso quando essa
“distância” muitas vezes já está cristalizada dentro dos nossos cursos
de licenciatura?
Universalizar o saber relativo à
cultura corporal é um direito da classe trabalhadora, logo, uma questão
de democracia e justiça social (como reza a boa tradição moderna);
isto, porém, não exigiria uma compreensão dos signos sociais racistas,
machistas, cristãos, heterossexuais, eurocêntricos etc., tatuados nesta
mesma cultura corporal (como propõe profanamente a pós-modernidade)?
RELACIONANDO COM A EDUCAÇÃO FÍSICA
Potencialmente o livro
instrumentaliza estudantes e professores para uma visão crítica da
escola e de seu currículo quando, por exemplo, nos incentiva a ver
ligações entre Educação Física e identidades sociais, assim como
questões de gênero, raça e etnia, além de (é claro) classe social;
incentiva-nos ainda a ver relações também entre uma cultura corporal
“erudita” e outra “popular”; ou, quem sabe, entre uma “pedagogia
moderna” e outra “pós-moderna” da Educação Física etc. Acreditamos
ainda que os cursos de licenciatura de Educação Física devem enriquecer a
formação inicial de seus professores com a discussão sobre teorias do
currículo que complementam – dialeticamente – aquelas referências às
teorias da educação, sociedade, aprendizagem, fisiologia etc, o que
comumente as demais licenciaturas já fazem.
Nesse sentido, é preciso superar
falsas dicotomias do tipo teoria crítico-superadora versus
crítico-emancipatória, em prol de um diálogo mais efetivo entre ambas
(resguardadas suas diferenças e conflitos), tendo em vista o gesto
utópico e libertário que ambas buscam lançar para o futuro. Precisamos
também aprender melhor a descolonizar currículos de Educação Física tão
cheios de figuras (logo, identidades) como Michael Jordan, Airton
Sena, Romário etc., que não raras vezes tipificam um mundo capitalista
de luxo, consumo e alienação, em favor de figuras como Zumbi dos
Palmares, mestres Bimba e João Pequeno, Garrincha etc., que não raras
vezes tipificam um mundo ‘subalterno’, dos ‘de baixo’, diria Gramsci.
Em relação ao currículo oculto,
quantos estudos temos sobre ele na Educação Física? Que sabemos sobre
seus possíveis efeitos em nossas aulas e demais experiências de ensino? O
fato de que a quadra de esportes integra ‘oficial’ e quase que
‘naturalmente’ a arquitetura de uma escola não revela aí material para
reflexão sobre os efeitos ‘ocultos’ que isso pode ter na subjetividade
de nossas crianças?
Quanto ao multiculturalismo, que
seria uma cultura corporal multicultural? A cultura corporal brasileira
não é há muito dotada de grande diversidade, dada a contribuição dos
diferentes povos, raças e etnias que a constituem, como, por exemplo,
as práticas corporais indígenas (corrida de tora, arco e flecha),
afro-brasileiras (maculelê, capoeira), européias (futebol da
Inglaterra, jogo de bocha italiano), asiáticas (artes marciais)? A
imposição de uma corporeidade-padrão nas escolas não reflete o
imperialismo cultural, logo, a hegemonia de uma corporeidade quase
sempre branca, cristã, burguesa, eurocêntrica, heterossexual, machista,
racista etc.?
Tratando-se de
pós-modernismo/estruturalismo, podemos dizer que eles possuem uma
vertente crítica e outra conservadora, esta última um sustentáculo
ideológico do capitalismo globalizado. Ambas se fazem presentes na
Educação Física brasileira. Basta ver as pesquisas e publicações em
periódicos e revistas, bem como simpósios, seminários e congressos da
área. Contudo, precisamos saber mais sobre seus efeitos em termos de
formação de professores, produção de conhecimentos e intervenção
pedagógica. É fundamental, também, saber como e até onde as
“provocações” pósmodernas/estruturalistas têm sido enfrentadas com
responsabilidade (fugir delas é um equívoco histórico). E entre outras
indagações interessantes podem-se destacar: até que ponto e como a
tendência à fragmentação pós-moderna está presente, por exemplo, nas
diretrizes curriculares nacionais que colocam – em boa medida – a
formação, tanto do bacharel quanto do licenciado, à mercê das ‘forças
cegas’ e anárquicas do mercado? Até onde e como a tendência pós-moderna
de abandono das grandes transformações coletivas em prol de causas
privadas, individualistas, não acarreta um deslocamento de identidades,
fazendo com que cada vez mais egressos dos cursos superiores de
Educação Física busquem se tornar (ou sonhem em ser) personal-trainners
e cada vez menos educadores públicos?
Por seu lado, os estudos culturais
nos trazem novas possibilidades de pesquisa e/ou intervenção a partir
da cultura corporal veiculada pela TV aberta e a cabo, internet, gibis e
revistas em quadrinhos, cinema, vídeos, Dvd’s, videogames (para
ficarmos apenas em alguns exemplos). Todos esses canais influenciam a
nossa cultura corporal e, claro, a de nossos alunos, com sérias
conseqüências em termos de prática pedagógica. Se quisermos pensar a
nossa prática, não podemos deixar todo esse material cultural
literalmente do lado de fora de nossos currículos, sabendo que eles
estão absolutamente dentro do imaginário de práticas corporais de
nossas crianças.4
Para ampliar nossa compreensão do
currículo de Educação Física, recorremos a ‘outras abordagens, outras
metáforas, outros conceitos’, que nos permitissem alcançar essa meta.
Pois, como sabemos, a teoria do currículo
tem se beneficiado enormemente de uma abordagem voltada para sua economia política, uma abordagem que deve muito às influências marxistas. Essa abordagem nos permitiu analisar o currículo em suas vinculações com a economia e a produção de características pessoais para o mercado de trabalho capitalista. Essas compreensões constituem ainda hoje recursos importantes de uma teoria crítica do currículo. Elas não devem ser abandonadas. Continuamos a ser uma sociedade capitalista, uma sociedade governada pelo processo de produção de valor e de mais-valia. Ligar o currículo a este processo é um dos avanços fundamentais que devemos à vertente crítica da teoria do currículo. Isso não exclui, entretanto, outras abordagens, outras metáforas, outros conceitos, que possibilitem que ampliemos nossa compreensão daquilo que se passa no nexo entre transmissão de conhecimento e produção de identidades sociais, isto é, no currículo. Acredito que o papel de uma teoria crítica do currículo é o de ampliar essa compreensão, não o de estreitá-la. (Silva, 1996, p. 178)5
Entretanto, apontar novas
possibilidades de desenvolvimento teórico e metodológico à pedagogia, ao
currículo e ao ensino, numa perspectiva crítica e dialética, não pode,
sob nenhuma hipótese, ser confundido com a ‘fundação’ ou
‘descobrimento’ (seguido de aquisição dos direitos de propriedade e da
patente) da pedagogia dialética, ‘final e absoluta’ da Educação Física.
Não achamos possível deduzir princípios curriculares críticos ou progressistas em termos absolutos e abstratos. Ao invés disso, devemos pensar em formas e variedades de currículos críticos e progressistas, os quais surgiram e vão surgir a partir do encontro de educadores, estudantes e das outras pessoas envolvidas na educação com as situações concretas de suas lutas específicas. O que as lições da teoria, como as que resumimos acima, podem fazer é ajudar a iluminar essas múltiplas experiências, como resultado de elaborações, também elas, de práticas educacionais passadas. É no encontro da teoria [da Educação Física] com a história que residem nossas esperanças de uma educação e de uma sociedade mais democrática. (Silva, 1992, p. 91)6
NOTAS
* A presente resenha foi elaborada
pelo Grupo de Estudo e Pesquisa em Sociologia e Teoria Crítica do
Currículo mantido pela FEF/UFG, como atividade de encerramento do seu
primeiro módulo de estudos.
** Acadêmicos de Educação Física da FEF/UFG.
*** Professora especialista em Educação Física Escolar pela FEF/UFG.
**** Professor da FEF/UFG.
1 A esse respeito ver mais em
MOREIRA, Antônio Flávio. Sociologia do currículo: origem,
desenvolvimento e contribuições. Rio de Janeiro: 1990. Mimeografado.
Ver também MOREIRA, Antônio Flávio; SILVA, Tomaz Tadeu. (Orgs.).
Sociologia e teoria crítica do currículo: uma introdução. São Paulo:
Cortez, 1994. Sobre a origem e o desenvolvimento do campo do currículo
no Brasil, ver MOREIRA, Antônio Flávio. Currículos e programas no
Brasil. Campinas: Papirus, 1990.
2 Ver mais sobre estes estudos e suas
relações com a educação, a escola e seu currículo em SILVA, Tomaz
Tadeu. O que produz e o que reproduz em educação: ensaios de sociologia
da educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
3 Sobre a “nova” sociologia da
educação, ver FORQUIN, Jean Claude. Escola e cultura: bases sociais e
epistemológicas do conhecimento escolar. Porto Alegre: Artes Médicas,
1993. Ver ainda FORQUIN, Jean Claude. Sociologia da educação: dez anos
de pesquisa. Petrópolis: Vozes, 1995.
4 Evidentemente as contribuições
sobre sociologia e teoria crítica do currículo não terminam aqui.
Sabemos, por exemplo, da importância dos estudos sobre a história e a
sociologia das disciplinas escolares. Referências clássicas nesse âmbito
são: SANTOS, L. L. P. História das disciplinas escolares: perspectivas
de análise. In: Teoria & Educação, Porto Alegre, n. 2, 1990;
CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um
campo de pesquisa. In: Teoria & Educação, Porto Alegre, n. 2, 1990.
Outra fonte de contribuições são os estudos sobre o impacto do
neoliberalismo e da qualidade total no campo educacional. A esse
respeito, consultar, por exemplo: GENTILI, Pablo. (Org.). Pedagogia da
exclusão: críticas ao neoliberalismo em educação. Petrópolis: Vozes,
1995; GENTILI, Pablo; SILVA, Tomaz Tadeu. (Orgs.). Neoliberalismo,
qualidade total e educação. Petrópolis: Vozes, 1995. Sobre as atuais
transformações no mundo do trabalho e suas implicações no currículo
escolar ver, entre outras obras: FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e crise
do trabalho: perspectivas de final de século. Petrópolis: Vozes, 1998;
FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e crise do capitalismo real. 4. ed. São
Paulo: Cortez, 2000. Sobre a política de parâmetros curriculares e uma
avaliação nacional, ver, por exemplo: APPLE, Michael. A política do
conhecimento oficial: faz sentido um currículo nacional? In: MOREIRA,
Antônio Flávio; SILVA, Tomaz Tadeu. (Orgs.). Sociologia e teoria
crítica do currículo: uma introdução. São Paulo: Cortez, 1994; MOREIRA,
Antônio Flávio. Neoliberalismo, currículo nacional e avaliação. In:
SILVA, Luiz H. da; AZEVEDO, José C. (Orgs.). Reestruturação curricular:
teoria e prática no cotidiano escolar. Petrópolis: Vozes, 1995. Sobre
currículo e globalização, ver, por exemplo: SANTOMÉ, Jurjo T.
Globalização e interdisciplinaridade: o currículo integrado. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1998. 5 SILVA, Tomaz Tadeu. Identidades
terminais: as transformações na política da pedagogia e na pedagogia da
política. Petrópolis: Vozes, 1996. 6 SILVA, Tomas Tadeu. Currículo,
conhecimento e democracia: as lições e dúvidas de duas décadas. O que
produz e o que reproduz em educação: ensaios de sociologia da educação.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
0 comentários:
Postar um comentário